sábado, 10 de novembro de 2012

Textos do projeto "O maravilhoso nos contos de origem africana"



Conto 1
Bonsucesso dos pretos (lenda afro-brasileira)
SANTOS, Joel Rufino dos. Gosto de África: histórias de lá e daqui. São Paulo: Globo, 2005.

            No interior do Maranhão, tem uma vila que se chama Bonsucesso. Ninguém, porém, a chama assim. Todos dizem Bonsucesso dos Pretos. Por quê? Vou contar.
            Há longo tempo, debaixo da escravidão, uma moleca desagradou ao senhor. Não sei o nome dela. Vamos chamá-la de Felipa, um nome que se usava muito antigamente.
            Gozado essa coisa de nome... No tempo do Onça, por aqui ninguém se chamava Simone, Mônica, Karem ou Roberta. Era Felipa, Anacleta, Jacinta, Jovina...
            Aborrecido, o senhor usou seu triste direito de castigar. Mandou levarem Felipa à floresta. Fosse amarrada num pé de pau, até morrer de fome e sede. Isso se as onças e cobras não fizessem o serviço primeiro.
            A mãe da escravinha se ajoelhou aos pés do dono:
            — Perdoe, perdoe... — gemia. — Eu prometo ser sua escrava para o resto da minha vida.
            — Escrava você já é — respondeu ele. — Não prometa o que não pode cumprir. Levante daí.
            A própria esposa dele se meteu:
            — Perdoa dessa vez. Dá outro castigo. No mato, ela morre.
            — É pra morrer. Você é mulher, mas pode entender uma coisa: estamos cercados de escravos.
            Se não formos duros, eles não nos respeitam. Se não nos respeitam, estamos fritos. De brancos aqui só temos eu, você e o padre. Já pensou? É negro para todo lado.
            Pois o padre também pediu:
            — Faça como Nosso Senhor. Perdoe.
            O dono fitou a batina com desprezo:
            — Nosso Senhor não viveu aqui, no meio dessa gente. Cuide das suas orações, que é melhor.
            O feitor passou a corda nos pulsos de Felipa. E saiu com ela. Andou, andou, até achar uma clareira:
            — Aqui está bom. Já verás, negra do diabo.
            Passada uma semana, o dono chamou o feitor:
            — Vá ver a negrinha. Confirme se já morreu.
            O malvado viu os urubus e pensou: “O serviço acabou”.
            Qual! Felipa continuava amarradinha. Mas inteira. Ao seu lado, uma gamela de frutas e outra de água.
            — Quem te deu isso? — foi gritando.
            — Minha madrinha.
            — E tu lá tem madrinha? — e chutou de novo.
            — Vá lá ver.
            Outra vez, o feitor achou as gamelas. Dessa vez com favos de mel. Chutou tudo, como da primeira vez. Rogou uma praga:
            — Que este moleque que te protege o carregue o demo!
            — Não foi moleque — respondeu Felipa. — Foi minha madrinha.
            O dono deixou passar um mês:
            — Vá buscar o esqueleto.
            Felipa estava melhor do que antes. Gordinha.O dono não acreditou:
            — Você não está me mentindo? Traga a sujeita aqui, ou vai você pro tronco.
            Quando o feitor chegou, Felipa já estava solta.
            Achou estranho. Bateu o mato. Se houvesse alguém, ele achava. Nada. Botou Felipa na frente e veio pra fazenda. Imaginem a surpresa do povo quando cruzaram o terreiro. Na presença do amo, Felipa não baixou os olhos.
            — Se você tem parte com o capeta, vá dizendo — ordenou ele. — Quem te deu comida e água?
            — Minha madrinha.
            — Faz de conta que eu acredito. Quem é tua madrinha?
            — O senhor mande ver.
            — Vamos fazer o seguinte. O feitor volta lá contigo. Se encontrar essa tua madrinha, você está livre. Se não...
            O feitor afiou o facão, e lá foram. No lugar em que Felipa ficou amarrada, estava agora uma Nossassenhorazinha de dois palmos de altura.
            Desconfiado, o feitor enganchou a imagem nas costas e lá veio.
            — Como prometi – falou o senhor –, você está livre.
            Puseram a santinha numa capela com altarde madeira lavrada. No outro dia, quando foram ver, cadê ela? O senhor apertou Felipa.
            — Mande ver no pé de pau onde o senhor me prendeu.
            Trouxeram a imagem de volta. No outro dia, ela voltou pro mato. E assim diversas vezes. Na décima vez, o senhor trancou a imagem num cofre de ferro que comprou em São Luís. Era do Reino, que pra ele o ferro da terra não valia nada.
            A violência atraiu desgraças. Uma cobra mordeu o feitor e ele bateu as botas. Deu praga no algodoal e se perdeu tudo. A senhora teve erisipela e ficou com perna de elefante. Cosme, o quilombola, passou por perto da fazenda, e vinte escravos fugiram pra se encontrar com ele. (Bom, esta última coisa foi desgraça somente pro senhor. Pros que fugiram, foi felicidade.)
            O padre, que estava ali pra impedir desgraças, deu um conselho: botasse a imagem num prato, largasse no rio. Onde ela parasse, é que ela queria ficar. A senhora obrigou o marido a fazer promessas: se ficasse boa, libertava dez escravos. Pelo rio abaixo, a Nossassenhorazinha parou onde é hoje Bonsucesso dos Pretos, porque ali vivem, até hoje, os descendentes do povo de Felipa.



Conto 2
O casamento da princesa – Conto popular de Gana e países da África Ocidental, recontado por Celso Sisto



            A beleza andava de mãos dadas com a princesa Abena, pois tinha reunido numa só pessoa um harmonioso pescoço alongado, um rosto arredondado e seios grandes.
            O rei, seu pai, sorria para si e para o mundo, cada vez que constatava, com os próprios olhos, a formosura da filha. E por isso acreditava que seria fácil casá-la, quando chegasse a hora.
            A sucessão dos anos só aumentava a perfeição dos traços de Abena. Além de tudo, ela tinha a ajuda dos magníficos trajes que usava: sempre envolta nos mais belos tecidos e vestimentas; sempre adornada com os mais fulgurantes colares e brincos; sempre emergindo do colorido das roupas, como a mais nova visão da beleza.
            A notícia da suprema graça de Abena circulou pelas tribos, atravessou os mares, subiu aos céus, correu por toda África tropical. Mas foi só quando os habitantes dos mais distantes povoados começaram a chegar para ver com seus próprios olhos a princesa mais linda do mundo, é que chegaram também os pedidos de casamento.
            Os primeiros pretendentes à mão da princesa foram o Fogo e a Chuva.
            A chuva surgiu de repente, meio às escondidas, usando um kente[1] único, feito da mais pura seda, especialmente para aquela ocasião. Pedir a mão daquela princesa exigia roupa adequada e padronagem nunca antes vista!
            Nem é preciso dizer que Abena encantou-se logo com os modos do seu primeiro pretendente. O olhar molhado, o corpo luzidio, as palavras que rolavam feito água cantante, ficaram ainda mais bonitas nos versos que ele chuviscou nos seus ouvidos:
            – O olhar do amor fez passear o passarinho que assim baixinho, trouxe água do seu bico até o seu ninho...
            E o pretendente ofereceu ainda mais:
             – Linda Abena, olhe para adiante, olhe. Daqui até as savanas de Burkina Fasso, até as areias do Golfo da Guiné3, até as plantações do Togo, até as florestas da Costa do Marfim, você não encontrará ninguém que seja mais poderoso que a Chuva. Com um simples aceno das mãos, faço crescer as plantações e multiplico as colheitas e as ervas para os rebanhos. Graças a mim, teremos sempre água pura para beber e rios e lagos cristalinos, cheinhos de peixes, onde se pode nadar e pescar.
            E as palavras da Chuva soaram tão musicais aos ouvidos de Abena, e seu coração solitário ficou tão refrescado, que ela acabou prometendo-lhe casamento. E pediu-lhe que voltasse no outrro dia para acertar os detalhes com o Rei.
            Acontece que enquanto Abena se comprometia com a Chuva, o Rei, na mesma hora, logo ali, em outro aposento, firmava acordo com o Fogo. Este segundo pretendente tinha também ido pedir a mão da princesa. E da mesma forma que a Chuva, mostrou-se em trajes suntuosos e,  com finíssimos modos, apregoou seeu poder:
             – Meu Rei, veja por si mesmo. Daqui até as savanas de Burkina Fasso, até as areias do Golfo da Guiné3, até as plantações do Togo, até as florestas da Costa do Marfim, não haverá ninguém com maior vigor que o Fogo. Minhas chamas mantêm os animais perigosos ao longe, cozinham a comida diariamente, iluminam as intermináveis noites escuras e aquecem o corpo durante a rigorosa estação do frio. Que mais alguém poderia oferecer à sua bela filha? Consinta que eu me case com ela!
            O Rei ficou tão impressionado com tal pretendente, e casar a filha durante a colheita do cacau era decisão antiga, que acabou por aceitar a proposta! Disse que ia comunicar o trato à princesa e mandou que o Fogo voltasse no dia seguinte, para acertarem os detalhes.
            Mais tarde o Rei chamou a filha e comunicou-lhe a decisão que havia tomado:
            – Encontrei teu futuro marido!
            – Como assim, meu pai?
            – Prometi ao fogo que se casaria com ele!
            – Com o fogo? Mas eu prometi à Chuva que me casaria com ela!
            Estava armada a confusão! O Rei, preocupado, pôs-se a pensar numa solução para não ter que faltar com sua palavra. A princesa, por sua vez, não queria trair seu coração.
            – Não podemos quebrar nossas promessas! Sempre foi assim com nosso povo! E assim será! – sentenciou o rei.
            Na manhã seguinte, mal a claridade do dia luziu no horizonte, lá estavam o Fogo e a Chuva nas terras do Rei. Vinham certos de que em breve também fariam parte de tudo aquilo ali, casando-se com a princesa Abena. Mas um não sabia do outro.
            O Rei veio recebê-los e, sem rodeios, disse que já havia decidido a data para o casamento de sua filha.
            – O meu casamento com ela? – perguntaram o Fogo e a Chuva ao mesmo tempo!
            Só então se deram conta de que alguma coisa estava errada. Mas o Rei apressou-se em dizer:
            – A princesa Abena se casará com o vencedor da corrida que organizei para o dia do casamento!
            A notícia espalhou-se como chuva miúda. A notícia correu como rastro de fogo. Em toda a África Ocidental não se falava em outra coisa a não ser na tal disputa pela mão da princesa! Havia os que apostavam no Fogo. Era grande o número dos que torciam pela Chuva.
            Só a princesa Abena conhecia de antemão o resultado, pois dizia para si mesma que fosse quem fosse o ganhador da corrida, ela só se casaria com a Chuva. Assim ela havia prometido desde o início, assim queria o seu enredado coração. Mas esse segredo, que não podia ser compartilhado com ninguém, fazia-a triste, murchava sua beleza. Afinal, como ir contra a decisão soberana do próprio pai?
            Chegou finalmente o dia marcado. Era dia de festa e toda a aldeia estava enfeitada para a corrida e para a cerimônia do casamento. Todos esperavam o resultado final.
            O Rei deu a partida e a Chuva e o Fogo começaram a correr. Os tantãs faziam vibrar a pele do antílope negro que recobria cada tambor, os chifres e as trombetas espalhavam no ar seus sons, ora estimulando as torcidas, ora impulsionando os concorrentes. Tudo ao redor parecia cantar:
            “Quero ouvir os tambores a tocar:
            Quero sentir os pés dos que dançam.
            Quero sentir os tambores a tocar:
            Quero ouvir os pés dos que dançam...”
            O Fogo estava ganhando. Havia no ar um vento que o ajudava a multiplicar as chamas e a alastrar-se rapidamente. Por mais esforço que fizesse a Chuva, suas gotas eram insuficientes para colocá-la na frente. Ao contrário, quanto mais vertia água, mais pesada ficava e mais terreno perdia!
            O Fogo foi avançando, deixando para trás apenas as cinzas do que tocava com todo o seu calor e potência. Já era quase o vencedor...
            Mas no momento da chegada, ali onde já evoluíam as máscaras rituais e o povo se aglomerava, eis que o céu lançou um imenso rugido. Um trovão, que ouvido desde as águas do golfo até as paredes das montanhas, ecoou. No ar. E foi o suficiente para, em seguida, desabar o maior aguaceiro de que já se teve notícia. Uma cortina de chuva despencou com a força de uma imensa manada de elefantes correndo pelas savanas, impedindo qualquer um de ver um palmo diante do nariz. Chuva da espessura do mundo, rápida, brilhante, quebrando-se nas folhas, fustigando as pedras, martelando o chão.
            O Fogo que avançava destemido apagou-se a poucos metros da linha de chegada. E a Chuva enfim foi declarada vencedora!
            A princesa Abena, mais feliz do que nunca, atirou-se de braços abertos sob a água celeste e bailou como nunca ninguém vira. Seu corpo inteiro comemorava a vitória da Chuva, inclusive seus olhos. O ritmo dos tantãs, que então batiam mais forte, obrigou todos que ali estavam a entrar na dança, que se estendeu por incontáveis noites.
            Daquele dia em diante, o Fogo e a Chuva tornaram-se inimigos mortais. Só uma coisa não teve jeito: toda vez que chove forte, as pessoas param o que estão fazendo e põem-se a bailar debaixo da água que cai do Céu, tudo ainda para comemorar o casamento da princesa.
           
 Conto 3
As Pérolas de Cadija (conto da cultura muçulmana recolhido no Senegal)
SANTOS, Joel Rufino dos. Gosto de África: histórias de lá e daqui. 3ª edição. São Paulo. Global editora, 2005.

            Era uma vez uma menina chamada Cadija. Sua mãe havia morrido e agora ela tinha de carregar seu irmãozinho nas costas. Passado um ano, seu pai resolveu casar de novo e então Cadija ganhou uma madrasta.
            Cadija pensou que fosse ser feliz com ela. Mas sabe-se lá por que a madrasta não gostou dela. Já tinha uma filha de primeiro casamento e talvez pensasse:
              “Quando meu marido morrer, essa Cadija vai ficar com tudo. E minha filha verdadeira com nada”.
               Daí, toca a perseguir a enteada. Dava trabalhos impossíveis para a coitada. Acordava-a no meio da noite:
             -- Anda pegar água. Anda varrer o pátio. Anda cozinhar inhame.
                Certa manhã seu ódio pela enteada chegou ao máximo. Tirou Cadija da cama aos berros:
             -- Vá lavar esta colher! E só serve com água do mar. Não volte aqui com ela suja.
              Era um jeito de matar Cadija, pois até Dakar onde ficava o mar, eram cinco dias e cinco noites de horrorosos caminhos.
             -- Quem vai cuidar de meu irmãozinho? -- perguntou a menina.
             -- Carrega contigo – respondeu a mulher com um sorriso mau. -- Ou pensa que aqui você tem criada? Tem cada uma!
              Cadija partiu. Atravessou rios e matas. Só faltava atravessar uma savana para chegar d Dakar. A comida acabara e as duas barrigas, a dela e do irmãozinho, começavam a roncar.
            -- As-Salam! (A paz esteja sobre você) – cumprimentou um cameleiro.
            -- As-Salam! -- respondeu ela.
            -- Está pensando em atravessar a savana sozinha? -- perguntou o homem.
             -- Estou.
            -- Não faça isso. Sabe quem mora aí? O quibungo.
             -- Quem é? -- perguntou Cadija.
             -- Um monstro com um buraco na parte de trás do pescoço. Te engole. Depois não diz que não te avisei.
             -- E se eu não encontrar com ele? Sempre fui uma menina de sorte...
             -- Ah! -- falou o cameleiro, atirando o manto para as costas. Se não encontrar o Quibungo vai encontrar um monstro pior, o Abutre Mortal, também chamado Arranca-Corações. Ou um ou outro.
             Desanimada, Cadija sentou numa pedra. De repente sentiu umas brisa no rosto e nas mãos. E ouviu uma voz:
            -- Eu te ajudo. Deixe seu irmãozinho esperando aqui. No lugar dele ponha esta pedra. Se você encontrar o Quibungo, já sabe o que fazer.
               Era um iska, o djin que morava no vento.
            -- E se ao invés do Quibungo eu encontrar o Abutre-Mortal?
            -- Aí não posso fazer nada – respondeu a iska. -- Ou um ou outro.
               Com o pedregulho nas costas, Cadija entrou na savana. No segundo dia de viajem apareceu um guerreiro lindo. Tinha arco e flecha e falou com toda gentileza:
             -- Onde vais, flor do meu encanto?
             -- A Dakar, lavar esta colher, que minha madrasta me mandou.
             O guerreiro se abaixou para fazer gracinha. No seu pescoço apareceu o buraco escuro que não tinha fim. Cadija rapidamente levou as mãos às costas e virou o pedregulho lá dentro.
            O Quibungo mastigou e morreu.
              Em Dakar, um mendigo que estava na porta da mesquita pediu:
             -- Me ajude, pelas barbas do profeta... -- Só tenho essa colher.
             -- Eu sei – disse o mendigo. -- Espere anoitecer. Só lave a colher quando aparecer a lua. Você vai ver.
            Cadija assim fez. Foi meter a colher na água e ela voltar cheia de Pérolas. E assim muitas vezes, até encher a canga. Estava rica.
            Ao passar de volta pela savana, ouviu um ronco vindo de uma caverna. Deveria ser o Abutre Mortal, o Arranca-Corações.
              Pegou o irmãozinho e foi para casa. Tinha se passado oito dias e a madrasta, feliz, achava que ela não voltaria.
               Abrindo o saco de Pérolas, Cadija fez a divisão. A madrasta queria mais. Puxou a menina para o quarto:
             -- Onde foi que arrumou essa riqueza? Temos bruxa aqui em casa e não sabia!
             -- Foi no mar – respondeu. Meti a colher e foi só.
            A mulher fingiu agradecer. E falou para sua filha verdadeira:
             -- Se essa boboca ficou rica, também ficarei. Posso carregar mais Pérolas que vinte Candijas juntas.
             Pegou o camelo e partiu. Ordenou aos criados que preparassem uma festa para quando voltasse. Mandou os cozinheiros fazerem cuscuz, seu prato preferido. Na manhã do décimo dia, porém, ela não voltou. De tarde, também não. Quando foi de noitinha e os convidados já iam embora, a filha verdadeira decidiu:
             -- Minha mãe já deve estar chegando. Vamos comer ou o cuscuz estraga.
            Quando ela abriu o panelão, ficou branca de susto. Dentro do cuscuz havia um coração. Ainda estava batendo e ela desmaiou, pois sabia de quem era.
            Quando a Cadija, pegou seu irmãozinho e foi morar bem longe dali.
             Esta é a história de Cadija, uma menina negra e muçulmana do Senegal. Uma história semelhante a outras, de outros povos, em que há fadas e madrinhas más. Só  que, aqui, a fada existe na forma de um anjo da guarda, o djin, e os perigos que a menina enfrenta suscitam os mistérios das culturas milenares que sobreviveram apesar da colonização.       

 Conto 4

O caçador do povo que enfrentou o pássaro tenebroso (conto da mitologia Iorubá)
PRANDI, Reginaldo. Ifá, o adivinho: histórias dos deuses africanos que vieram para o Brasil com os escravos. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2002.

            Entre as inúmeras histórias que Ifá reuniu e que ele gosta de contar para quem vai consultá-lo, há uma que fala de um jovem caçador que tinha apenas uma flecha e que, mesmo assim, se transformou num grande herói popular. A história diz mais ou menos o seguinte:
            Lá na África, o reino de Queto estava em festa. O reei mandou preparar um grande banquete e convidou todos os habitantes do lugar para, durante vários dias, comer, beber e dançar. Além dos que moravam na aldeia, vieram convidados de todos os lugares próximos: dos campos, das florestas, das montanhas. Veio gente do interior e do litoral. Reis de cidades vizinhas mandaram seus representantes.
            Logo de manhã,  todo o povo se encontrava na praça, defronte ao palácio do rei, cada um ostentando seu traje mais caro e vistoso. Todos falavam alto, riam, exibiam suas joias. O rei estava sentado no trono, no meio da praça, sob um enorme guarda-sol, e todas as autoridades para lá se dirigiam para saudá-lo. Os parentes que vinham de longe cumprimentavam os do lugar, as moças flertavam com os rapazes, as crianças corriam de lá para cá. Os tambores tocavam e farta comida era servida.
            Porém, mal a festa havia começado, uma coisa muito grave aconteceu. De repente, a luz do dia foi encoberta pelo voo de uma ave tremenda. O pássaro imenso cobriu a luz do sol e espalhou o medo na praça. Fez um voo rasante sobre os telhados da cidade e pousou bem na cumeeira do palácio real. Tinha penas negras e arrepiadas, olhos de vidro, bico de aço.
            Quando o pássaro deu seu primeiro pio, as folhas caíram das árvores, a comida estragou nas gamelas, o vinho azedou nas cabaças.
            Quando o pássaro deu seu segundo pio, os mansos animais da aldeia ficaram enfurecidos, os pés de inhame nas plantações vizinhas murcharam, a água das minas e cisternas ficou com gosto de sal.
            Quando o pássaro deu seu terceiro pio, a terra tremeu. E o rei compreendeu que cometera um grande erro: tinha convidado todo mundo para a festa, menos a Feiticeira. A Feiticeira agora queria vingança, com certeza. Com certeza se sentia humilhada e desprezada. Sim, pois mandara o pássaro tenebroso. Sim, aquilo era coisa da Velha Feiticeira do Pássaro, que na língua do lugar era chamada Iá Mi Oxorongá.
            Mais que depressa, o rei ordenou: “ Que sejam chamados aqui imediatamente os mais hábeis caçadores do meu reino e que eles matem o pássaro terrível”.
            Assim foi feito.
            Da cidade de Ilarê veio Oxotadotá, que caçava com cinquenta flechas. Da cidade de Morê compareceu Oxotogi com suas quarenta flechas. Vindo da cidade de Idô, apresentou-se Oxotogum, o caçador que tinha vinte flechas. Todos prometeram ao rei acabar com o bicho perverso ou perderiam suas próprias vidas. Mas todos os três gastaram suas flechas e fracassaram. Nenhum acertou o pássaro da Feiticeira. Todas as flechas caíam no vazio, e eles foram presos por ordem do rei. A ameaça do pássaro era cada vez mais aterrorizante. O rei sabia que, se ele desse mais um pio, homens, mulheres e crianças começariam a cair sem vida. Foi quando, vindo da cidade de irem, apresentou-se o caçador Oxotocanxoxô, o caçador de uma flecha só. O rei disse ao caçador: “Mata a ave ou morre com os outros que antes de ti tentaram e fracassaram”. O caçador concordou, afirmando: “O poder da Feiticeira não me atemoriza”.
            A mãe de Oxotocanxoxô, que estava no meio da multidão, temeu do fundo de sua alma pela vida de seu único filho, porque se ele nãoabatesse o bicho malditoela o perderia. Perderia tudo o que tinha na vida de precioso: seu filho. Sem demora, a aflita porém resoluta mãe do caçador desvencilhou-se da turba que a cercava e foi correndo consultar Ifá, o Adivinho. Ele jogou os búzios e disse: “O pássaro é enviado da ressentida Feiticeira, que não foi convidada à festa e quer vingança”. Jogou de novo os búzios e disse: “É preciso apaziguar a Feiticeira, pois sua mágoa odienta é a origem do mal”. Ele completou o jogo e recomendou à mulher desesperada: “Faze uma oferenda à Senhora Dona do Pássaro e vamos esperar que ela se acalme”.
            A mãe do caçador fez o que recomendou o Adivinho. Ofereceu à Feiticeira cinco galinhas gordas, que foram cozidas em azeite-de-dendê com sal, cebola e pimenta. O refogado foi servido numa gamela forrada com purê de inhame, tendo por cima dezesseis ovos cozidos, tudo acompanhado de mel de abelha e vinho-de-palma. A mulher depositou tudo aos pés da árvore onde morava a Velha do Pássaro e pediu com sincera humildade: “Aceita a oferenda, minha mãe, e deixa meu filho viver”. A Feiticeira, faminta, não pôde resistir ao aroma do guisado. A comida estava deliciosa e ela comeu e lambeu os beiços. Depois de devorar as cinco galinhas e tudo o mais que acompanhava, preparou-se para tirar uma soneca. “Não há festança melhor que uma boa galinhada”, sentenciou, bocejando de sono, e concluiu: “A festa do rei não me interessa mais”.
            Enquanto isso, lá na praça, o caçador se preparava para atirar sua única flecha. Fez a pontaria, mirando bem no coração da ave maldita, estirou ao máximo o arco e atirou. No exato momento em que a Feiticeira ferrou no sono, a flecha, a única flecha do caçador, abandonou o arco, descreveu uma longa trajetória sobre a praça e, acompanhada pelo olhar ansioso da multidão em silêncio, alcançou o alvo. Atravessou o coração do pássaro, no preciso instante em que ele abria o bico perverso para emitir mais um dos seus piados malfazejos. A ave tenebrosa, morta, se esborrachou no chão da praça. O reino de Queto estava livre da ave e de seu feitiço! O caçador foi carregado nos ombros do povo e a festa reiniciou, agora, agora com muito mais júbilo, muito mais alegria, muito mais razão de ser. O povo nunca esqueceu o acontecido e até hoje venera a memória do caçador de uma só flecha, que desde então é chamado Oxóssi, nome que, na língua do lugar, quer dizer o Caçador do Povo. Até hoje o povo cultua a memória do caçador que matou o pássaro da Feiticeira. A memória de Oxóssi, o Caçador do povo.



 Conto 4 (segunda opção)
COMO SURGIRAM AS ONDAS DO MAR (conto da mitologia Iorubá)

FRANCHINI, A. S. e SEGANFREDO, Carmen. As melhores histórias da mitologia africana. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2011.
            Iemanjá havia sido brindada, no começo dos tempos, com o governo dos mares. Sua alegria não conheceu limites quando entrou na posse do seu azulado e ilimitado império.
            – Tudo azulzinho! Tudo limpinho!
            De fato, naqueles primeiros dias, a deusa dos mares mais parecia uma garota propaganda de sabão em pó, com suas vestes azuis imaculadas, a percorrer alegremente os seus refrescantes domínios.
            Era com um sorriso divertido que ela sentia os peixes deslizarem-lhe pelo corpo, fazendo cócegas em sua pele. Todo o exército inumerável de criaturas que compõem o universo marítimo rendia-lhe simpática vassalagem, incluindo os tubarões e demais criaturas da sua família de predadores, que não ousavam sequer encostar uma barbatana na soberana dos mares.
            Mas o que agrada mesmo à deusa era a limpeza. Como gostava de subir aos céus nas costas de um golfinho – o mais alto possível! “eia, amigo, para cima, para cima!” – e observar, quase das nuvens, o grande piso anil do mar, sem uma única ruguinha ou sujeirinha!
            E assim estiveram as coisas até que, num certo dia funesto, começou a acontecer uma coisa que antes não acontecia: a poluição dos mares.
            – Que manchinha é aquela lá em cima? – disse ela, num final radioso de dia, a cavalgar o dorso brilhante do seu golfinho nas profundezas do mar.
            Obediente à sua ama, o peixe agitou suas barbatanas e cauda, imprimindo uma velocidade vertiginosa ao seu corpo. Iemanjá, inclinada para frente como um jóquei, agarrava-se ao dorso do animal, curiosíssima de saber o que se passava lá em cima.
            Logo a deusa estava à tona, tomando nas mãos uma porcaria qualquer.
            – Isso não é daqui! – disse ela, pois conhecia toda e qualquer cacaca dos habitantes do mar.
            Com o passar do tempo, a sujeira aumentou. Além das dejeções, havia também toda espécie de sujeira artificial, como papel.
            Furiosa com aquela invasão dos seus domínios, Iemanjá subiu até o céu para pedir explicações a Olorum, o deus supremo, que, segundo uma lenda, a ajudara a criar o mundo.
            – De onde vem toda essa imundície? – disse ela, inconformada.
            – Daquelas novas e turbulentas criaturas que criei para habitarem a parte seca do Aiê.
            Não demorou nada para a deusa do mar descobrir que se tratava dos homens.
            – E com que direito estas criaturas relaxadas se metem a jogar suas porcarias para dentro dos meus domínios? – esbravejou a deusa. – Veja em que estado está meu vestido!
            Realmente, o vestido antes imaculadamente azul da deusa apresentava agora manchas de um tom marrom absolutamente inestético.
            – Lave-o, ora. Água é o que não falta não falta no seu império – disse o deus supremo.
            – Água imunda! – disse ela, esquecendo-se das vestes. – Veja só o estado em que está!
            Iemanjá levou, então, o deus supremo para um ligeiro “tour” aéreo sobre os mares. Do alto puderam ver grandes crostas a sobrenadarem nas águas.
            – Ora, são apenas algumas ilhotas que se formaram! – disse Olorum, sem querer enxergar a verdade.
            – Não são ilhotas coisa nenhuma: é pura imundície!
            Os dois desceram e Olorum constatou que as ilhas não passavam, de fato, de lixo acumulado.
            – Diga às suas criaturas de barro que parem de emporcalhar meus domínios! – intimou a deusa.
            Bem, Olorum até que lhes disse que parassem, mas quem não sabe que advertir os homens e não adverti-los é tudo o mesmo? A emporcalhação continuou. Todo santo dia, homens e mulheres iam à beira da praia arremessar às águas, outrora azuis, do mar os seus dejetos e sobras.
            Então, a paciência de Iemanjá conheceu seu fim.
            – Agora chega!
            Tomando nas mãos seu leque de prata chamado abebé, Iemanjá começou a agitá-lo com tamanha fúria nas profundezas do mar que logo um grande redemoinho se formou, empurrando grandes massas de água para os lados. Dali a pouco, não houve uma única praia que não tivesse recebido, nos braços de gigantescas ondas, todo o seu lixo de volta.
            E desde este dia, as ondas não pararam mais de regurgitar de volta para a terra toda a sujeira que os seres humanos, a despeito do castigo, teimaram em continuar a lançar para dentro do mar.

           
Conto 5
O DIA EM QUE O ARCO-ÍRIS ESTANCOU A CHUVA (Conto da mitologia Iorubá)
PRANDI, Reginaldo. Oxumarê, o arco-íris: mais  histórias dos deuses africanos que vieram para o Brasil com os escravos. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2004.

            Quando havia escravidão em nosso país, milhares de africanos que pertenciam aos povos iorubás
foram caçados e trazidos ao Brasil para trabalhar como escravos. Assim como outros africanos aqui escravizados, os iorubás, que também são chamados nagôs, trouxeram seus costumes, suas tradições, seus deuses, os orixás. E, até hoje, muitas dessas tradições dos antigos nagôs estão vivas, tanto no Brasil como na própria África. Fazem parte delas as histórias de Ifá.
            Ifá, o Adivinho, aquele que conhece todas as histórias já acontecidas e as que ainda vão acontecer,
conta que na antiga África negra, em tempos imemoriais, vivia a mais velha das mulheres, a mais antiga de todas. Ela era tão arcaica que até ajudou Oxalá a criar a humanidade, emprestando-lhe a lama do fundo do lago onde ela vive para que ele moldasse o primeiro ser humano. Apesar de velha, era mulher bela e formosa, era uma deusa, e Nanã era seu nome.Teve dois filhos, um muito bonito, o outro feio.
O filho feio é conhecido pelo nome de Omulu, o outro, o belo, nós o chamamos de Oxumarê.
            O príncipe Oxumarê usava roupas vistosas tingidas de todas as cores, que realçavam ainda mais sua beleza e o faziam invejado por todos. Onde quer que fosse, era sempre admirado por sua formosura e pelo luxo de seus trajes. Esse gosto pelas roupas alegres herdara do pai, conhecido como o homem da capa multicolorida. Contam muitas histórias sobre Oxumarê e dizem que ele costuma aparecer ora na forma de uma cobra, ora como o próprio arco-íris enfeitando o céu.
            Pois bem, dizem que houve um tempo em que a Terra foi quase destruída pela Chuva. Chovia o tempo todo, o solo ficou todo encharcado, os rios pularam fora de seus leitos, de tanta água.
As plantas e os animais morriam afogados, a umidade e o mofo se alastravam por todos os lugares,
a doença e a morte prosperavam. A chuva é benfazeja, mas não pode durar para sempre, sabia muito bem Oxumarê. Então, o jovem filho de Nanã, que nunca tinha tido simpatia pela Chuva, apontou seu punhal de bronze para o alto e com ele fez um grande corte em arco no céu, ferindo a Chuva e interrompendo sua ação. A Chuva parou de cair e alagar tudo aqui embaixo, e o Sol pôde brilhar de novo, refazendo a vida.
Desde então, quando chove em demasia, Oxumarê risca o céu com seu punhal de bronze
para estancar as águas que caem das alturas.Quando isso acontece, todos podem ver o belo príncipe no céu vestido com suas roupas multicoloridas. Todos podem vê-lo na forma do arco-íris. Na língua africana de Oxumarê, aliás, seu nome quer dizer exatamente isso: o Arco-Íris. Quando não está chovendo, Oxumarê vive na Terra.
            Muitos dizem que Oxumarê foi posto no firmamento por sua própria mãe Nanã, a Sábia, para que, de lá do alto, todos pudessem admirar sua beleza. Dizem também que foi por causa de sua formosura
que Oxumarê acabou transformado numa cobra. Tudo porque Xangô, o Trovão, rei da cidade de Oió,
encantou-se com as cores do Arco-Íris. Para poder admirar Oxumarê quando bem quisesse, Xangô planejou aprisioná-lo para sempre. O rei Trovão chamou Oxumarê em seu palácio e, quando o jovem príncipe entrou na sala do trono, os soldados do rei fecharam todas as portas e janelas. O príncipe das cores não podia fugir de Xangô, estava encurralado, preso, impedido de subir ao firmamento.
            Oxumarê ficou desesperado. Quem estancaria a Chuva, se ele permanecesse preso? Quem salvaria a humanidade da fúria das águas? uem impediria as enchentes, as enxurradas destruidoras,
as avalanches de terra encharcada? Quem frearia a destruição das colheitas por excesso de água?
Quem livraria o homem da fome, da morte? Oxumarê, o Arco-Íris, implorou a Olorum. Olorum, o Senhor Supremo, ouviu o prisioneiro e, com pena dele, transformou-o numa cobra. A cobra então deslizou pelo chão da sala do palácio e, com facilidade, escapou pela fresta sob a porta.Ficou livre para sempre.
            Por isso Oxumarê vive no firmamento e vive no solo. Vive no Céu e na Terra. Ele é ambíguo, é misterioso. Temos medo quando o vemos rastejar pelo chão feito um réptil asqueroso, e nos encantamos com suas cores luxuosas esparramadas em arco no horizonte. Ele é o príncipe-serpente, a cobra que rasga o céu. É o Senhor do Arco-Íris.



[1] Traje típico do povo Ashanti.