BICHO DE
PALHA
(Conto recolhido por Câmara Cascudo no Rio Grande do Norte)
Contam que um homem muito rico enviuvou e casou
novamente, tendo uma filha, Maria, que se punha mocinha e que era linda. A
madrasta antipatizou logo com a enteada e se tomou de ódio quando teve uma
filha e esta era relativamente feia, comparada com Maria.
O homem possuía propriedades espalhadas e vivia
viajando, dirigindo seus negócios. Durava pouco tempo em casa e nesses
momentos, Maria passava melhor. Na ausência do pai a madrasta obrigava-a aos
serviços mais rudes e pesados, alimentando-a do que havia de pior e em
quantidades insignificantes.
A vida ficou insuportável para a moça que se
consolava rezando e chorando. No caminho do rio onde ia lavar roupa, encontrava
sempre uma velhinha de feições serenas e muito boa. Maria acabou contando seus
sofrimentos e o silêncio para não magoar o pai. A velhinha animava-a com
palavras cheias de doçura. Como a madrasta fosse se tornando mais violenta e
brutal, a enteada resolveu abandonar a casa e ir procurar trabalho longe
daquele inferno. Encontrou-se com a velhinha e confessando sua idéia, a velha
concordou, aconselhou-a muito, deu-lhe a bênção e na despedida, tirou uma
varinha pequenina e branca como prata, dizendo:
– Leva esta varinha, Maria, e quando estiveres em perigo, desejo ou sofrimento, deves dizer: "minha varinha de condão, pelo condão que Deus te deu, dai-me". E tudo sucederá como pedires.
Maria agradeceu muito e fugiu. Antes, obedecendo ao
conselho da velha, fez uma grande capa de palha entrançada com um capuz onde
havia passagem para olhar, e meteu-se dentro
Depois de
muito andar, chegou a uma cidade importante. Pediu emprego num palácio e lhe
disseram não haver mais lugar. Ia saindo, triste e com fome, quando um
empregado lembrou que precisavam de alguém para lavar as salas, corredores e
escadas e limpar os aposentos da criadagem. Maria aceitou o encargo e, graças
ao seu vestido singular, só a chamavam "Bicho de Palha". Suja, silenciosa,
retirada pelos cantos, trabalhando sempre, Bicho de Palha não incomodava
ninguém e todos a toleravam.
O palácio
era de um príncipe moço, bem feito e airoso, que ainda tinha mãe, e estava na
idade de casar. Noutro palácio, no lado oposto da cidade, realizariam festas
durante três dias. As moças estavam alvoraçadas com os bailes, assistidos pelos
rapazes da sociedade. No palácio a conversa versava sobre os bailes. Amas,
visitantes e criadas comentavam a organização e o esplendor das três noites
elegantes.
Finalmente
chegou a primeira noite. Bicho de Palha, através dos orifícios de sua máscara,
olhava o príncipe e o amava sinceramente. Rondava, discretamente, por perto
dele, ansiando por uma ordem. Já de tarde, não havendo outra empregada por ali,
o príncipe gritou:
– Bicho de
Palha! Traga uma bacia com água...
Bicho de Palha levou a bacia e o príncipe lavou o
rosto. Depois, todos foram para o baile, uns para dançar e outros para ver.
Ficando sozinha no seu quarto escuro, Bicho de Palha despiu a capa, pegou a
varinha e comandou, como a velhinha lhe ensinara:
– Minha
varinha de condão! Pelo condão que Deus te deu, dai-me uma carruagem de prata e um
vestido da cor do campo com todas as suas flores.
Palavras ditas, apareceu a carruagem de prata,
cocheiros e servos, um vestido completo, do diadema aos sapatinhos cor do campo
com todas as suas flores.
Bicho de Palha vestiu-se, tomou a carruagem e foi
para o baile onde causou sensação. O príncipe veio imediatamente saudá-la e só
dançou com ela, não permitindo que os outros moços se aproximassem. Confessou
que estava impressionado e perguntou onde ela residia. Bicho de Palha ensinou:
– Moro na Rua das Bacias...
À meia-noite
em ponto, pretextando ir respirar o ar livre, a moça correu para sua carruagem
que desapareceu na estrada. O príncipe ficou inconsolável e saiu da festa logo
a seguir.
No outro
dia, no palácio, as criadas contavam ao Bicho de Palha as peripécias do baile e
a princesa misteriosa que fora a roupa mais bela e o rosto mais formoso da
noite. O príncipe despachara muitos criados para procurar a Rua das Bacias, mas
todos regressaram sem saber informar.
Nessa tarde, o príncipe pediu a Bicho de Palha uma
toalha. Quando todos partiram para a festa, Bicho de Palha pegou a varinha e
obteve uma carruagem de ouro e um vestido da cor do mar com todos os seus
peixes. Vestiu-se e foi para o palácio do baile. Logo na entrada, toda a gente
a reconheceu e aclamou-a como a mais elegante, graciosa e simpática. O príncipe
não saía de perto dela, conversando, dançando, fazendo mil perguntas. Insistiu
pelo endereço da moça.
– Não moro mais na
Rua das Bacias e sim na rua das Toalhas. Mudei-me hoje.
Aconteceu como na primeira noite.
Bicho de
Palha inventou uma desculpa e meteu-se na carruagem que correu relâmpago. O
príncipe saiu também e passou o outro dia suspirando e mandando procurar, em
toda a cidade, a tal Rua das Toalhas.
Bicho de Palha ouviu as impressões entusiásticas
dos empregados na cozinha, todos contando a paixão do príncipe e a beleza da
moça.
Na tarde desse dia o príncipe pediu a Bicho de
Palha um pente. Vendo-se sozinha no palácio, Bicho de Palha invocou o poder da
varinha de condão e recebeu uma carruagem de diamantes e um vestido da cor do céu
com todas as suas estrelas.
Entrando no salão do baile, Bicho de Palha recebeu
as saudações como se fora uma rainha. Ninguém jamais vira moça tão atraente e
um vestido tão raro. O príncipe andava atrás dela como uma sombra, servindo-a e
perguntando tudo, doido de amor. Bicho de Palha disse que se havia mudado para
a Rua dos Pentes, definitivamente. E dançaram muito.
Perto da meia-noite, sabendo que era a hora em que
moça desaparecia como se fosse encantada, o príncipe chamou seus criados e
mandou abrir uma escavação junto do portão do palácio, esperando que a
carruagem parasse. Tal, porém, não se deu, Bicho de Palha saltou para a
carruagem e esta disparou como um raio, pulando o fosso, mas, o solavanco fora
tão brusco que um sapato de Bicho de Palha, atirado fora da portinhola, perdeu-se.
Um criado achou-o e levou-o ao príncipe, que ficou satisfeitíssimo.
Debalde procuraram na cidade a tal Rua dos Pentes.
O príncipe deliberou encontrar a moça por outra maneira. Mandou levar o
sapatinho a todas as casas, calçando-o em todos os pés. Quem o usasse perfeito,
nem largo, nem apertado, seria a encantadora menina dos bailes.
Os criados andaram rua acima e rua abaixo, calçando
sapatinho nos pés das moças e das velhas. Nenhuma conseguia dar um só passo com
ele no pé. Voltaram os criados para o palácio e experimentaram calçar os
chapins nas empregadas e amas. Nada. Finalmente uma criada encarregada lembrou
que Bicho de Palha não fora convidada para calçar o mimoso calçado.
Riram todos, mas, para que o príncipe não os
acusasse de ter deixado alguém de calçar o sapatinho, mandaram buscar Bicho de
Palha, como motivo de riso, e lhe disseram que experimentasse. Bicho de Palha
com a varinha na mão, pediu que lhe aparecesse no corpo, por baixo da capa de
palha, o vestido da terceira noite da festa.
O príncipe veio assistir. Bicho de Palha, cercada
pela criadagem que ria, meteu o pé no sapatinho e este lhe coube perfeitamente.
Depois estirou o outro pé e todos viram que calçava sapatinho igual ao
primeiro. Mal podiam crer no que viram, quando caiu a palha e apareceu a moça
formosa dos três bailes, com o vestido da cor do céu com todas as estrelas, o
diadema com a lua de brilhantes, tudo rebrilhando como as próprias estrelas do
firmamento. O príncipe precipitou-se abraçando-a e chamando por sua mãe para
que conhecesse a futura nora.
Casaram logo. Bicho de Palha contou sua história, e
a varinha de condão, cumprida a vontade da velhinha, que era Nossa Senhora,
desapareceu, deixando-os muito felizes na terra.
RIBEIRO, José.
Brasil no folclore. 3ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro, Editora Aurora,
sd, p.83-87.
O texto é grande,mas vale a pena ler!
ResponderExcluirMaiara 605
A versão da folhinha é muito maior!
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